segunda-feira, novembro 29, 2010

âncoras

estes pequenos abrigos que a solidão agarra e protege. as ínfimas certezas que só os sonhos enormes sabem entender e aceitar. as palavras repartidas que roubam ao tempo a pressa, diluindo as mágoas num sopro comum. os gestos gratuitos cujo único retorno é a surpresa imersa pelas rotinas e acasos da vida de todas as noites. as cavernas de silêncio habitadas pelos fantasmas a dilatar o negro das páginas passadas.

 
E a haste terminada pelas linhas que intersectam os membros, desenha o prolongamento da morte que morreu. da morte que o amor matou.

Porque sem as âncoras que nos devolvem à substancia transpirada do que acontece, somos eternos náufragos na incerteza  precária de um qualquer bote salva mortes. sem um porto seguro onde ancorar as latências da felicidade possível.

A antecipar medos e tempestades no diâmetro fechado de um farol ansioso.

domingo, novembro 07, 2010

as coisas vulgares que há na vida

também deixam saudade. ao escutar os velhos de um tal jardim acústico, reparo que projectam o eco em notas sem acorde. vulgares, porque experimentaram toda uma vida, cabem sem nome em qualquer verso ou história.

E deixam saudade. não aquele sentimento  vulgar de quem se habitua a gostar de tudo o que vive no passado,  mas uma saudade que desenha  a memória dos sonhos com rugas na face, artroses nos joelhos, hiperglicemias no olhar e o coração hiper-tenso.

As coisas vulgares especializam a vida. e são as vidas que deixam saudade.

domingo, outubro 31, 2010

a três dimensões



Há quem não acredite na mudança. por razões várias e pela desrazão na solidez de uma ignorância adquirida, esquecem que ´a única coisa constante na Natureza é precisamente a mudança´. o raciocínio exigido acaba por ser simples. passa por admitir que aquilo que muda pode não ser o que queremos que mude e  que podemos padecer de uma cegueira parcial limitativa do campo de visão. implica aceitar que as certezas são mais frágeis do que algodão doce e que só a concordância com a ruptura permite considerar o perdão nas suas três dimensões – ontem, amanhã e hoje.


 Perdoar é oferecer uma oportunidade real à mudança latente daquele que nutre a mágoa alheia por errar constantemente. quem apenas tenta esquecer, faz tudo menos perdoar. porque perdoar é uma tarefa demasiado exigente para ser pensada com a memória e a esperança apagadas. implica criar um terreno sólido onde quem erra é aceite tal como é, e não como gostaríamos que fosse. e é nessa lucidez sólida que se ergue a oportunidade para que o outro faça ou seja algo diferente.




imagem: http://obviousmag.org/

portugal dos pequeninos e dos cegos

O pessimismo é de tal ordem que apetece apelidá-lo de cegueira. a alma já não é nossa  – vendemos os pensamentos grandes a troco da mesquinhez de nos sentirmos vítimas da nossa própria pequenez.


Os epidemiologistas têm registado o fenómeno: nas últimas décadas as pessoas apanham depressões com a mesma facilidade com que ficam constipadas. e atenção que este verme da patologia depressiva é altamente pernicioso! migra pela corrente sanguínea e atinge o coração nas suas quatro cavidades. perfura a parede cardíaca até atingir a cavidade pericárdica, onde prolifera e liberta factores indutores de fibrose que calcificam toda a estrutura, tornando-a impenetrável. depois abre fissuras e caminha em direcção aos alvéolos, que vai destruindo rapidamente, imobilizando a função ventilatória. 
Chegam as pás mas já é tarde demais. parece que a electrocardiografia ainda não consegue registar os batimentos anímicos. 

Costumo pensar que há janelas temporais para se pensar grande, experimentar o mundo e sonhar, sonhar como se não houvesse amanhã. porque um dia a corrente torna-se tão forte que não há vidro que resista. e se não tivermos aprendido como nutrir o nosso próprio corpo com a substância dessa solidez construída e entendida, tornamo-nos um vegetal cego e fragmentado.


E contribuímos até à morte para a memória de um país à beira mar soterrado. a lamentar-se de tudo e a não saber apreciar o valor de nada.


quarta-feira, outubro 20, 2010

depois da tempestade ...

... vem outra tempestade. agasalhos em diferencial, apenas. a fingir que faz sol enquanto o tempo passa. (e tudo passa)

e depois do tempo, talvez, a bonança amena de um fim de tarde quase perfeito.


imagem: http://abrigodeventos.blogspot.com/

terça-feira, outubro 12, 2010

biópsia

anestesiam-se os tecidos subcutâneos com lidocaína, perfura-se o osso ilíaco e remove-se o cilindro. procedimento simples.
lê-se o relatório anatoma-patológico, entranha-se a malignidade da notícia e direcciona-se para acompanhamento psicológico. logística fácil.
uma ou outra lágrima escorrega a sombra de um desespero sem chão e afecto. mas tudo bem.
depois enxugam-se os lenções e reciclam-se os catéteres.

domingo, outubro 10, 2010

gonduleiros à procura de um abrigo


- o lado quente da saudade.
lugar comum onde permanece a âncora dos sonhos partilhados.  e o cansaço cúmplice após um novo combate, no qual a entropia que a distância desenha (sem esforço), acaba ferida.

Sabes, é o tempo. é o tempo que nos ensina a conduzir a gôndula da distância. com os remos que a vida empresta às mãos de cada um.

Aqui, a maré oscila a vontade e o desejo, e nutre a certeza do que só pode ser incerto.

Mas não há correntes nem tormentas, tu sabes e eu sei. São apenas dois ritmos e dois tempos. e este sentimento síncrono a harmonizar a dor das batalhas silenciosas.





tão fácil (existir)


quando a depressão é a culpada por tudo quanto dói. por vezes sob o pseudónimo de sistema nervoso ou  cabeça. e fazem-se cúmplices desse fardo externo, as doenças do corpo a multiplicar a insónia de sonhar.

Tão fácil aguardar a morte com as mãos vazias e a alma entupida com antidepressivos e ansiolíticos. ou apressá-la. acomodar-se aos rótulos e deixar de procurar.

Tão fácil quando a causa do que aperta o coração é passada ou respira pelos pulmões hiperinsuflados da ansiedade e do medo. quando os sopros e os frémitos desculpam a razão de querer amar.

Tão fácil culpar a história e o destino. temer um deus-polícia a distribuir infortúnios e injustiças.

Tão fácil fingir que a vida não nos pertence. agir como se não fossemos os únicos responsáveis pelas opções que tomamos. vender a alma a troco de um bode expiatório barato.

Tão fácil ver acasos em vez de pessoas. ser escravo e vítima da vida que não se quer ter.

Tão fácil ter medo da morte, quando no fundo o que existe é um terrível medo de viver.



quarta-feira, outubro 06, 2010

a despedir fantasmas com um novelo de lã,


que agarro ao fim do dia. enquanto desato os sentidos de tantas histórias em tão pouco. tantas vidas e uma cadeira a favorecer as lombalgias da audição. porque há outros dias.
ou noites em que não apetece olhar mais longe do que a almofada resignada da apatia. nem  há tempo. para ver as coisas em vão e depurar delas um sentido condutor.

que somos enquanto vivemos. um fio conduzido de experiências e acasos e sonhos concretos. e as pessoas que nos são confiadas. e a cólera ferida das coisas em vão a ferver como pólvora atirada ao vento. (que passa)

ou às palavras acumuladas até à exaustão de uma mão que desenha as fraquezas com o lápis que contorna as conquistas.

e respira numa turbulência quase sagrada, o autismo dos dias e das coisas em vão. a despedir fantasmas com um novelo de lã.




domingo, setembro 26, 2010

i only ask of god

de que valem as palavras e as metafísicas. as lógicas e os silogismos. as razões e as retóricas. para quê estadiar a autenticidade  diminuída das formalidades  inúteis como fim em si mesmas. ou financiar a opacidade dos olhares profundos e das lágrimas cheias de sal e nada. a macicez dos conflitos insondáveis e perenes.

se vale a pena ter um coração grande quando as mãos são pequenas. (para que serve ter um coração do tamanho do mundo se não se consegue tocar os pés com as mãos.)
 

"um homem havia de ser medido pelos seus actos, pouco importando se dentro de casa era feito daquela mariquice de acreditar em deus ou da macheza cretina de se ligar aos malfeitores, estejam eles escudados numa igreja ou num governo.
"
(V.H.M, a máquina de fazer espanhóis)

quarta-feira, setembro 22, 2010

entre paredes e corredores


desenha-se o confronto que metade do curso adiou, por insistir em dar primazia aos acabamentos decorativos em detrimento dos alicerces. desta forma, acaba por ser o ciclo clínico a devolver ao estudante a retrospectiva de uma casa feita ao contrário. 

mais vale tarde do que nunca não chega. porque hoje há estudantes de medicina doentes. e amanhã haverá médicos doentes. e ontem houve pessoas doentes que morreram sem nome.

entre paredes e corredores e a indiferença de quem tem por hábito escorregar o fuso horário hospitalar, pelo menos que surja essa oportunidade. para reconhecer e discutir a possibilidade de nos fazermos pessoas felizes. antes que seja tarde demais. 

ou antes que seja nunca.

segunda-feira, setembro 20, 2010

contrastes

há dias assim. em que os verbos rir e chorar completam a expressão do mesmo sentimento. 
plural não ambíguo. indefinido pelo presente incerto e pelo futuro expectante.

mas concreto. na certeza feliz que a memória empresta à alquimia dos sonhos.

sexta-feira, setembro 17, 2010

jogo de palavras

Habituamo-nos a emprestar sentidos às palavras ditas.
Com recursos vários, entre estilos e camadas, sabemos bem como camuflar a nudez dos sentimentos. Exercitamos a técnica em cada jogada até perfazer a pontuação que inverte a verdade autêntica.

Como se de organismos susceptíveis a maleitas e afins se tratasse, ensinam-nos a protegê-los do frio e da chuva. Aprendemos a gramática e exercitamos a expressão.
Até chegar o dia em que o melhor agasalho se revela inútil, porque a vulnerabilidade caminha de mãos dadas com a resistência.
E tornamo-nos resistentes à simplicidade das palavras despidas.
Resistentes à verdade desprotegida. Desaprendemos de dizer.

Salva-nos a paliação gratuita de quem nos estende a mão.
De quem nos despe os agasalhos frios. De quem nos aquece a alma com o calor genuíno das palavras que não podem ser ditas. 

E juntos começamos a fazer da vida um jogo de silêncios.


sexta-feira, setembro 03, 2010