domingo, outubro 31, 2010

a três dimensões



Há quem não acredite na mudança. por razões várias e pela desrazão na solidez de uma ignorância adquirida, esquecem que ´a única coisa constante na Natureza é precisamente a mudança´. o raciocínio exigido acaba por ser simples. passa por admitir que aquilo que muda pode não ser o que queremos que mude e  que podemos padecer de uma cegueira parcial limitativa do campo de visão. implica aceitar que as certezas são mais frágeis do que algodão doce e que só a concordância com a ruptura permite considerar o perdão nas suas três dimensões – ontem, amanhã e hoje.


 Perdoar é oferecer uma oportunidade real à mudança latente daquele que nutre a mágoa alheia por errar constantemente. quem apenas tenta esquecer, faz tudo menos perdoar. porque perdoar é uma tarefa demasiado exigente para ser pensada com a memória e a esperança apagadas. implica criar um terreno sólido onde quem erra é aceite tal como é, e não como gostaríamos que fosse. e é nessa lucidez sólida que se ergue a oportunidade para que o outro faça ou seja algo diferente.




imagem: http://obviousmag.org/

portugal dos pequeninos e dos cegos

O pessimismo é de tal ordem que apetece apelidá-lo de cegueira. a alma já não é nossa  – vendemos os pensamentos grandes a troco da mesquinhez de nos sentirmos vítimas da nossa própria pequenez.


Os epidemiologistas têm registado o fenómeno: nas últimas décadas as pessoas apanham depressões com a mesma facilidade com que ficam constipadas. e atenção que este verme da patologia depressiva é altamente pernicioso! migra pela corrente sanguínea e atinge o coração nas suas quatro cavidades. perfura a parede cardíaca até atingir a cavidade pericárdica, onde prolifera e liberta factores indutores de fibrose que calcificam toda a estrutura, tornando-a impenetrável. depois abre fissuras e caminha em direcção aos alvéolos, que vai destruindo rapidamente, imobilizando a função ventilatória. 
Chegam as pás mas já é tarde demais. parece que a electrocardiografia ainda não consegue registar os batimentos anímicos. 

Costumo pensar que há janelas temporais para se pensar grande, experimentar o mundo e sonhar, sonhar como se não houvesse amanhã. porque um dia a corrente torna-se tão forte que não há vidro que resista. e se não tivermos aprendido como nutrir o nosso próprio corpo com a substância dessa solidez construída e entendida, tornamo-nos um vegetal cego e fragmentado.


E contribuímos até à morte para a memória de um país à beira mar soterrado. a lamentar-se de tudo e a não saber apreciar o valor de nada.


quarta-feira, outubro 20, 2010

depois da tempestade ...

... vem outra tempestade. agasalhos em diferencial, apenas. a fingir que faz sol enquanto o tempo passa. (e tudo passa)

e depois do tempo, talvez, a bonança amena de um fim de tarde quase perfeito.


imagem: http://abrigodeventos.blogspot.com/

terça-feira, outubro 12, 2010

biópsia

anestesiam-se os tecidos subcutâneos com lidocaína, perfura-se o osso ilíaco e remove-se o cilindro. procedimento simples.
lê-se o relatório anatoma-patológico, entranha-se a malignidade da notícia e direcciona-se para acompanhamento psicológico. logística fácil.
uma ou outra lágrima escorrega a sombra de um desespero sem chão e afecto. mas tudo bem.
depois enxugam-se os lenções e reciclam-se os catéteres.

domingo, outubro 10, 2010

gonduleiros à procura de um abrigo


- o lado quente da saudade.
lugar comum onde permanece a âncora dos sonhos partilhados.  e o cansaço cúmplice após um novo combate, no qual a entropia que a distância desenha (sem esforço), acaba ferida.

Sabes, é o tempo. é o tempo que nos ensina a conduzir a gôndula da distância. com os remos que a vida empresta às mãos de cada um.

Aqui, a maré oscila a vontade e o desejo, e nutre a certeza do que só pode ser incerto.

Mas não há correntes nem tormentas, tu sabes e eu sei. São apenas dois ritmos e dois tempos. e este sentimento síncrono a harmonizar a dor das batalhas silenciosas.





tão fácil (existir)


quando a depressão é a culpada por tudo quanto dói. por vezes sob o pseudónimo de sistema nervoso ou  cabeça. e fazem-se cúmplices desse fardo externo, as doenças do corpo a multiplicar a insónia de sonhar.

Tão fácil aguardar a morte com as mãos vazias e a alma entupida com antidepressivos e ansiolíticos. ou apressá-la. acomodar-se aos rótulos e deixar de procurar.

Tão fácil quando a causa do que aperta o coração é passada ou respira pelos pulmões hiperinsuflados da ansiedade e do medo. quando os sopros e os frémitos desculpam a razão de querer amar.

Tão fácil culpar a história e o destino. temer um deus-polícia a distribuir infortúnios e injustiças.

Tão fácil fingir que a vida não nos pertence. agir como se não fossemos os únicos responsáveis pelas opções que tomamos. vender a alma a troco de um bode expiatório barato.

Tão fácil ver acasos em vez de pessoas. ser escravo e vítima da vida que não se quer ter.

Tão fácil ter medo da morte, quando no fundo o que existe é um terrível medo de viver.



quarta-feira, outubro 06, 2010

a despedir fantasmas com um novelo de lã,


que agarro ao fim do dia. enquanto desato os sentidos de tantas histórias em tão pouco. tantas vidas e uma cadeira a favorecer as lombalgias da audição. porque há outros dias.
ou noites em que não apetece olhar mais longe do que a almofada resignada da apatia. nem  há tempo. para ver as coisas em vão e depurar delas um sentido condutor.

que somos enquanto vivemos. um fio conduzido de experiências e acasos e sonhos concretos. e as pessoas que nos são confiadas. e a cólera ferida das coisas em vão a ferver como pólvora atirada ao vento. (que passa)

ou às palavras acumuladas até à exaustão de uma mão que desenha as fraquezas com o lápis que contorna as conquistas.

e respira numa turbulência quase sagrada, o autismo dos dias e das coisas em vão. a despedir fantasmas com um novelo de lã.